A Competição Monetária: como convergimos no melhor dinheiro
Uma das principais funções do dinheiro é ser capaz de transportar valor e riqueza para o futuro. Assim, o dinheiro tem um papel temporal, que é definido pela sua capacidade de manter o seu valor com o passar dos anos e décadas. Esta capacidade do dinheiro é fundamental para uma sociedade alcançar estabilidade económica e prosperidade.
Para que um determinado bem ou item desempenhe a função de dinheiro deve apresentar boa durabilidade, ser resistente à degradação física e à ação da entropia. Caso contrário, não seria possível acumulá-lo para mais tarde trocar por outros bens ou serviços. Para além disso, a quantidade total de unidades monetárias deve crescer lentamente ou não crescer de todo. Isto porque, se for possível aumentar rapidamente e sem esforço a quantidade de dinheiro disponível na economia, o valor de cada unidade monetária decresce, o que desvaloriza as poupanças de todas as pessoas que escolheram um determinado meio para armazenar a sua riqueza. Por outras palavras, bom dinheiro é resistente à inflação.
Historicamente, o ouro tornou-se dinheiro devido às suas propriedades físicas, à dificuldade de o encontrar na natureza e ao custo monetário e energético associado à sua extração, o que permitiu manter o seu valor relativamente estável longo do tempo. Esta estabilidade recompensa quem poupa em ouro para preservar o valor já criado.
Ao longo do tempo, vários itens como conchas, sal, gado, contas de vidro e até pedras de Rai foram usados como dinheiro. Algo que todos estes bens têm em comum prende-se com o facto de, no local certo e com a tecnologia certa, ser extremamente fácil aumentar a sua produção e a quantidade de unidades existentes, o que leva à desvalorização das poupanças das pessoas que poupam nestes meios.
Por exemplo, até meados do século XIX, contas de vidro indicavam estatuto e eram usadas como dinheiro e reserva de valor em África. Em particular, contas de vidro venezianas eram extremamente valorizadas nas sociedades africanas, tanto pela sua raridade, como pela sua aparência exótica. Quando os exploradores europeus se aperceberam disto, inundaram o continente africano de contas de vidro para trocar por terras, ouro, marfim e escravos. Isto não só fez com que a população africana perdesse controlo da coesão social no seu continente, como permitiu aos colonos europeus adquirir a um custo extremamente baixo propriedade, mão de obra e outras matérias-primas raras. Quando os africanos se aperceberam da desvalorização do seu dinheiro já o dano económico estava feito. Sem dúvida, este evento foi um dos catalisadores que levou à exploração da população e desigualdade em África.
Um outro episódio inflacionário caricato, aconteceu no final do século XIX, na ilha de Yap, na Micronésia. Os habitantes desta ilha utilizavam pedras de Rai como dinheiro. Estas pedras de calcário pesavam toneladas e eram transportadas de ilhas distantes com a ajuda de canoas. O seu valor estava associado ao seu tamanho, artesanato e à história da sua jornada; não à utilidade que fornecia. Após naufragar na ilha de Yap, o Europeu David O’Keefe, apercebeu-se do valor que estas pedra tinham para os habitantes da ilha e decidiu tornar partido da tecnologia que tinha à sua disposição para lucrar.
Servindo-se do seu barco de madeira, o naufrago ajudou os habitantes a navegar para ilhas distantes e a criar mais dinheiro. Em troca, os habitantes da ilha pagavam a O’Keefe com polpa de coco e pepinos-do-mar, produtos comuns em Yap, mas que O’Keefe revendia com enorme lucro na China. Mas com a chegada de novas pedra à ilha, o valor de todas as unidades disponíveis caía. À medida que a inflação desvalorizava o dinheiro e diminuía o poder de compra dos habitantes de Yap, os vários chefes decidiram que apenas as pedra mais antigas, conquistadas com esforço e ligadas a relatos heróicos ou sacrifícios significativos, seriam reconhecidas como dinheiro.
Os episódios das contas de vidro em África e das pedras de Rai em Yap ilustram um padrão claro. Estes dois relatos históricos demonstram que a escassez é uma das propriedades mais importantes de qualquer meio monetário. Por outro lado, a inflação desvaloriza qualquer dinheiro e retira poder de compra a quem escolhe poupar nele. A lição económica é simples: dinheiro difícil de produzir - hard money - suporta a retenção de riqueza e poder de compra, ao passo que dinheiro fácil de criar - easy money - desvaloriza com o passar do tempo.
Mas, esta desvalorização não ocorre por acaso. Na realidade, quando um certo item se torna num meio monetário há um incentivo natural por parte de quem controla a produção desse dinheiro para, simplesmente, criar mais. Isto acontece porque o próprio mercado cria a procura necessária, levando a um aumento de preço que, por sua vez, aumenta o incentivo dos produtores para produzir mais quantidade. Quando esse bem é fácil de obter e a sua produção não exige despender tempo ou recursos energéticos, não há nenhum fator que trave os produtores de continuarem a sua produção infinitamente.
Por isso, numa sociedade capaz de identificar fenómenos económicos e monetários, as pessoas tendem a convergir no dinheiro mais difícil de produzir de modo a preservar o valor criado através do seu trabalho. No entanto, as pessoas que poupam em dinheiro cuja quantidade de unidades em circulação pode ser facilmente aumentada, veem o seu poder de compra diminuir ano após ano.
Quando o dinheiro não desvaloriza e é capaz de manter o poder de compra, as pessoas têm um incentivo maior para poupar, pois o dinheiro é um recurso escasso e finito. Para além disso, as pessoas que confiam que a sua riqueza é capaz de perdurar sem desvalorizar são encorajadas a planear a longo-prazo. Desta forma, ajustam a sua preferência temporal e adiam a gratificação no momento em prol da acumulação de capital, através de poupanças, investimento ou empreendimentos. Ou seja, a sua preferência temporal diminui e passam a valorizar mais os ganhos futuros do que o consumo no presente. Esta perspetiva a longo prazo permite a criação de processos de produção mais longos e produzir bens e serviços de melhor qualidade.
Ainda assim, o futuro é incerto e o ser humano precisa de consumir no presente para sobreviver. Portanto, a preferência temporal de qualquer indivíduo é sempre um valor positivo. Mas, a desvalorização do dinheiro ao longo do tempo tem como consequência o aumento desta preferência temporal e sobre-valorizar o consume presente.
Quando o dinheiro perde valor todos os anos, torna-se claro para muita gente que mais vale gastar o dinheiro hoje do que poupar e verificar passado uns meses que o dinheiro perdeu poder de compra e já não é possível comprar tantos bens ou serviços como no passado.
O foco a curto prazo não é compatível com a acumulação de capital, que depois permite o investimento e o desenvolvimento necessário para alcançar a prosperidade. Assim, dinheiro capaz de preservar o poder de compra é essencial para promover a estabilidade económica e o progresso.
A todo o momento está a ocorrer uma competição entre vários dinheiros, como por exemplo, dinheiro fiduciário, ouro ou Bitcoin. E, ao longo do tempo, as pessoas tendem a gravitar para aquele que se destaca como a melhor reserva de valor, capaz de preservar ou até mesmo fazer crescer o poder de compra ao longo dos anos. Deste modo, bom dinheiro, com boas propriedades monetárias não surge por decreto governamental, mas sim através de competição no mercado livre. Com o tempo, este processo darwiniano elimina opções monetárias inferiores para dar lugar a outras mais robustas, que se destaquem pela sua escassez e durabilidade.
De facto, à medida que mais pessoas adotam um determinado dinheiro o seu valor monetário aumenta. E com a convergência num único standard monetário, os custos de transação decrescem, os mercados tornam-se maiores e cria-se mais oportunidade de especialização; o que em última instância garante que a rede monetária permanece robusta e confiável.
No entanto, quando a quantidade de dinheiro na economia flutua de forma errática, o dinheiro deixa de ser uma boa unidade de medida, que não permite efetuar cálculos económicos fiáveis. Na verdade, quando todos os bens têm um preço numa unidade monetária comum e consistente, tanto indivíduos como empresas conseguem melhor comparar valores, estimar custos de oportunidade e, desta forma, tomar decisões mais informadas. Esta precisão é fundamental na alocação de recursos.
Para concluir, dinheiro cuja quantidade de unidades monetárias é fácil de aumentar preserva riqueza e poder de compra, enquanto que dinheiro fácil de criar destrói ambos. Historicamente, itens como o ouro tornaram-se dinheiro devido à sua escassez, durabilidade e resistência à inflação. Por outro lado, outros objetos como contas de vidro e pedras de Rai, sendo dinheiro fácil, desvalorizaram rapidamente, prejudicando todos aqueles que os usavam como veículo de poupança.
Referências
"The Bitcoin Standard", por Seifedean Ammous, Wiley, 2018
Para todos sem exceção: estudem Bitcoin, depois comprem Bitcoin e terão um futuro risonho. Não sou eu que o digo, é a matemática. Não me critiquem agora, critiquem me daqui a 10 anos, se conseguirem.
A verdade é que quem me criticou há 10 anos, agora não critica.
Infelizmente não acreditei há 10 anos.
Comprem sempre que possível.
Atenção, é um investimento a longo prazo.
Há uma questão de base, que o autor do texto, os bitcoineiros e outros criptomoedeiros não percebem: a principal criação de moeda não se dá com a colocação das notas e moedas em circulação – dá-se através da concessão do crédito bancário.
Para se perceber é necessário saber, pelo menos o que são os agregados monetários:
– M0 – Base monetária: moeda física (notas e moedas em circulação, em poder do público) + reservas bancárias
M1 – Moeda física em poder do público + depósitos à vista
(Há outros agregados – M2, M3 e M4, somando sucessivamente, depósitos a praz, títulos, fundos de investimento e outros títulos).
Isto é que é importante reter – quando um banco comercial concede um crédito bancário há criação de moeda. Ao aprovar um empréstimo bancário não entrega dinheiro físico ao cliente (não aumenta M1) mas credita o valor do empréstimo bancário na sua conta bancária (aumenta M2, depósitos à ordem). Este novo dinheiro, escritural, pode ser usado para pagamentos e transferências, tal como o dinheiro físico.
Os textos bitcoinistas situam-se apenas ao nível do agregado monetário M1, que é um agregado restrito e apenas uma fração de M2. E dizem que por os governos terem facilidade em criar o dinheiro “FIAT” (dinheiro físico) – e isso é que causa a inflação, enquanto os BTC têm um teto máximo de 21 milhões.
Mas a questão é outra – mesmo que o dinheiro fiduciário (de M1) desaparecesse e fosse substituído por 21 milhões de BTC a criação de moeda por via do crédito bancário continuava, ou seja M2 continuava a crescer por essa via.
O que cria a inflação é o aumento da totalidade do dinheiro em circulação – M1+M2+M3+M4. A política monetária dos bancos centrais é dirigida tendo em conta a totalidade do dinheiro em circulação e não as notas e moedas.
Se não perceberam isto, tenho pena porque é o básico. Vejam se acabam com o mito da grande virtude do limite de 21 milhões de BTC. E deixem as comparações com o ouro – o ouro terá sempre procura por ser usado na ourivesaria e em múltiplos fins industriais. O BTC, como um tipo financeiro, pode ou não valorizar no futuro. O BTC tem a procura que calhar, pode ser a mesma que têm atualmente os NFT.
Ni fim: O BTC, como um tipo de ativo financeiro (…)
A Bitcoin não compete diretamente com o dólar ou com outras moedas fiduciárias. A Bitcoin compete com outros ativos: ouro, imobiliário, ações. O dinheiro não é apenas criado com a concessão de crédito bancário. O dinheiro é criado quando os bancos centrais decidem criá-lo para financiar as despesas governamentais. É assim que o dinheiro é introduzido na economia. Quando é necessário introduzir liquidez na economia, os bancos centrais compram geralmente títulos de tesouro ou obrigações com novo dinheiro criado digitalmente. Esse dinheiro é depois usado para pagar salários, financiar obras públicas e outros projetos do governo.
https://www.youtube.com/watch?v=mrjoElG8KGI
Isso era dantes. Os bancos centrais de cada país europeu (e agora o BCE) estão impedidos de financiar despesas governamentais comprando títulos de divida pública. O FED, diretamente também não pode, embora possa por via indireta comprar títulos de dívida pública aos bancos para injetar liquidez no sistema bancário – mas atenção que o FED é independente (a contragosto de Trump), não faz isso para financiar as despesas do governo.
Mas isso continuava o mesmo se o euro ou o dólar fosse substituído pelo BTC.
Correção acima de duas expressões erradas:
“Os textos bitcoinistas situam-se apenas ao nível do agregado monetário M1 que é um agregado restrito e apenas uma fração de M2” – é, repetivamente M0 e M1, tal como no texto que se segue.
Também M1+M2+M3+M4 é uma expressão errada, visto que constituem suconjuntos do agregado do nível seguinte. A expressão correta é: A política monetária dos bancos centrais é dirigida tendo em conta a totalidade do dinheiro em circulação (M0, M1, M2, M3 e M4) e não, apenas, as notas e moedas em circulação.
Mas o BTC tendo uma ledger verificável, esse tipo de artifícios económicos são facilmente expostos e no fim a velha máxima prevalece ” não tens as keys não és dono do BTC”
Xiu! Precisamos deles pobres!!!!
Mas a partir do momento em que qualquer método e tipo de dinheiro é usado massivamente, ele não desvaloriza? Assim como acontece nos investimentos bolsistas,
Não, se for limitado. Se for limitado e muito usado, a tendência é valorizar.
Caro David, obrigado pela resposta. É que há a questão das bolhas e da especulação, que no início é uma valorização e uma corrida desenfreada, depois há o apogeu e o seu declínio.
O BTC pode ser muita bom… ou pode ser simplesmente como os bolbos de tulipa no seculo 17 na holanda. Era giro e valioso enquando foi giro. Depois simplemente deixou de ter valor, e toda a gente perdeu o investimento. Só o tempo dirá.
2025: Solana